Palavras à Milanesa

Palavras à Milanesa
Não! Este blog não é de gastronomia. Mas de palavras. À Milanesa. Palavras simples como este prato de arroz com feijão, bife e batata frita.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

CONTO DO VIGÁRIO OU ZÉ MARIO AZEDINHO INAUGURA CAPELA E LEVA FAMÍLIA PRA VER

Era engenheiro civil. Tinha 80 anos e adorava construir prédios. Andava pra lá e pra cá, acompanhava obras. Tudo isso guiando o próprio carro. Era incansável. Um belo dia, acordou de uma noite muito bem construída em seu inconsciente e bastante fértil. Havia sonhado com seu velho pai. Sujeito que morrera com quase 100 anos e nascera no distante século XIX.
No sonho, meio confuso, José Mário, via-se comprando vários galões de tintas naquelas casas barateiras no centro da cidade. Sentia também, no mesmo sonho, a presença e a voz do velho pai empurrando-o para tal tarefa. Ao despertar e aperceber-se de tudo, associou: “A capela. É isso, preciso mandar reformar e pintar a capela do papai pro Dia de Finados. Ele deve estar se revirando no túmulo e achando que eu esqueci dele”, pensou Zé Mario.
Passaram alguns dias e Zé Mário contratou seu Dias. Pedreiro, bombeiro, marceneiro, mestre de obras, pau pra toda obra e coveiro. Por isso estava sempre no São João Batista. À espera das mortes diárias que invariavelmente, fizesse chuva ou sol, aconteciam. Lá fazia bicos, espantava mosquitos e também se deparava com pedidos esquisitos, como o de seu Zé Mario.
Seu Dias passou noites trabalhando na reforma da capela. Precisava fazer aquele bico num horário que não fosse nobre. Pra ele o horário nobre era na parte da manhã. De noite quase sempre ele ia pra casa pra ficar no bar da esquina tomando “uns goró”, enquanto Lindaura, sua mulher, produzia o jantar e produzia-se como sobremesa quase sempre dispensada pelos apetites satisfeitos do marido ingrato. Pra quem não queria cumprir com suas obrigações conjugais um bico à noite não era mal.
Pois sim. O trabalho durou uma semana. Ao final daquela, exatamente no Dia de Finados, ficava pronta a obra de arte sacra do Seu Dias, de sobrenome Pinto, que não comparecia em casa, há dias, meses, e pintava aos sete as paredes enlutadas da capela do pai de Zé Mario, de sobrenome Azedinho, mas que era um doce de pessoa.
Zé Mário Azedinho acordou no Dia de Finados mais feliz do que em anos passados, pois naquele dia sua ida ao Cemitério não seria apenas uma visita fortuita para render homenagens a seus antepassados e suas raízes. E a seu velho pai, principalmente.
Preparado que só, Zé Mário planejou seu evento. Com antecedência necessária, mandou sua secretária, que dominava bem a linguagem da máquina, o tal computador, imprimir convites para a inauguração da nova decoração da Capela Azedinha. Secretária, de nome Kátia, a pedido do patrão, tratou também o padre, de sobrenome Conde, que atendia pelo nome de Pirajá. Pirajá de Conde. Rezava terço, ave-maria e pai nosso todo o dia no Outeiro da Glória, ou onde quer que fosse, no Rio ou na Bahia. Padre Pirajá, de batina e bota, foi buscado na Igreja da Glória no sábado pela manhã. Nunca havia feito missa em lugar tão pitoresco. “Tem doido pra tudo, com qualquer grau de parentesco”, pensou o padre, privando-se de formular resposta em respeito a Deus e à profissão que abraçara e de que gosta. Em caravana, partiram todos da família Azedinha, mais o vigário que, “pra” dar benção, ganhou contribuição a título de salário. Operário padrão de Deus, em nome da revolução.
Com orgulho no peito e devoção, Zé Mário apresentou a obra e sua conclusão às suas filhas, mulher, genro, primos, amigos e irmãos.
Muito grato disse ao capelão: “Oh vigário querido, dá tua benção sublime a este nobre instante da criação. Abençoai a capela reformada, última morada de meu pai Gonzaga, de nome João”. E todos foram embora da festa, felizes pensando em quem seria o próximo ter homenagens póstumas tão febris e belas como as que seu Azedinho preparara a seu velho pai.

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