Palavras à Milanesa

Palavras à Milanesa
Não! Este blog não é de gastronomia. Mas de palavras. À Milanesa. Palavras simples como este prato de arroz com feijão, bife e batata frita.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Jeremias e o Porquinho




Desceu pelo elevador do fórum da comarca já algemado. Na carceragem que fica embaixo das salas onde acontecem as audiências foi bem recebido por um policial militar. Os pertences pessoais ficaram numa bolsa. Dentro da cela, a primeira cena foi surreal. Outro policial militar, evangélico, fazia uma oração. Perguntou a ele se naquela noite ele aceitaria Jesus. Jeremias, meio confuso, disse que sim. A primeira pessoa que viu preso na cela foi familiar. O sobrinho de um amigo. Falante, o outro rapaz da cela, de 22 anos, estudante de publicidade, contava a razão pela qual estava ali. 
- Dei uma festa com drogas em casa. A polícia invadiu. Fui preso em flagrante. Artigo 33 do Código Penal. Sou usuário, mas fui enquadrado como traficante. Estou na cadeia há três meses e meio. Quando sair daqui, vou escrever um livro e te procurar pra me ajudar na tarefa.
Jeremias fez que sim com a cabeça. Nos olhos daquele rapaz havia certeza e esperança. 
Às 18h saiu da prisão do fórum para a prisão da delegacia. Tudo seria prisão dali em diante. O soldado que o escoltava na patrulhinha era simpático.  Chamava-se Arcanjo.  – Mesmo nome do Tim Lopes – comentou Jeremias. O policial ficou surpreso por ter um xará famoso: o jornalista que fora brutalmente assassinado em 2002 durante uma reportagem.
Na delegacia, talvez pelo curso superior, o inspetor do plantão garantiu-lhe uma cela exclusiva e ainda “direito” a levar um livro para seu “porquinho”. É assim que o pessoal do “metier” chama as celas de uma delegacia. Suspeitava a razão do apelido: ao entrar, confirmou. Para garantir-lhe a leitura noturna, o inspetor fez a gentileza de deixar a luz do corredor acessa. O livro foi companhia, foi travesseiro, foi cobertor. 
Passou a noite contando baratas e carneirinhos. Passou a noite ouvindo as “ocorrências” que chegavam a todo o instante. Uma dupla chegou detida por portar um facão. Um facão com nota fiscal, mas um facão, dizia o "meliante" no corredor. O policial fez troça diante da incredulidade do garoto. E este, ao prestar esclarecimentos ao “polícia”, interrogava-lhe o motivo pelo qual havia sido detido.
- Vocês são do Comando Vermelho. Já estão até identificados. São pegos como facão e explosivo na mochila e não sabem por que estão aqui? Santa burrice!
Na manhã do dia seguinte chegou a primeira mulher, acusada de furtar dinheiro do trocador de um ônibus. Eugenia Arribada da Silva. – Arribada da onde, dona? Perguntou o inspetor. Chegou a arribada, Jeremias dançou. 
- Quantos têm aí dentro? Bradou o policial. Um - respondeu o próprioJeremias.
 – Sai daí.
Foi naquele instante que Jeremias realmente ingressou no submundo carcerário. O “porquinho” para o qual foi transferido tinha 1,5m por 1,5m e quatro "gentis" companheiros. Havia um acusado de homicídio, outro pela Lei Maria da Penha, um outro que estava em “triagem” e um último que parecia um preso profissional, o chamado come e dorme. - Aqui nois engorda. Não tem outra coisa pra nois fazer si  não “cumê” e “durmí”.  
- Seu “puliça” num vai “trazê” o rango pra nois?”
Após o almoço, gentilmente declinado por Jeremias, repassado aos colegas, e diante dos comentários anteriores de que não havia o que fazer, Jeremias propôs aos “colegas” fazerem “adedanha”. A proposta não teve aderência. Os quatro companheiros de cela dormiram profundamente após a refeição regada a guaravita, não sem antes fazerem o rodízio dos lugares. - Já rodei por todos os cantos desse “porquinho’”, disse um. Jeremias ficou de pé. Ficou de pé durante o dia inteiro. Ficou de pé até o final de tudo.
Era cerca de 13h30min, denunciava o telejornal da TV que se ouvia da sala do inspetor, que, impune, fumava um cigarro num ambiente fechado. 
– Que ironia. A lei deveria ser pra todos - pensou Jeremias. 
Neste instante da cela ouviu o grito:
- Pode soltar o PA( pensão alimentícia). Já está tudo ok. Gritou um policial do corredor. O alvará de soltura já está chegando. E o alvará foi chegando, foi chegando, foi chegando. Eram 18h30min e Jeremias estava livre. Durante todo aquele dia, Jeremias pensou na vida. Jeremias estava livre. Jeremias era outro homem.





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