Palavras à Milanesa

Palavras à Milanesa
Não! Este blog não é de gastronomia. Mas de palavras. À Milanesa. Palavras simples como este prato de arroz com feijão, bife e batata frita.

domingo, 29 de setembro de 2013

Via Dutra





Era um garoto que amava os Beatles, mas não os Rolling Stones. Também adorava Hilda Hilst. Ou HH, como a escritora era também conhecida. Tal como meu pai, eu gostava de música. Vivia música. Gostava também de escrever. Ao contrário de meu pai. Vivia de escrever. Escrevia para viver mas queria viver para escrever. Tinha eu um certo lirismo na alma, mas também algumas pedras no coração. Quando criança, pensava apenas em seguir alguma profissão que me possibilitasse escrever. Escrever, escrever, escrever. Não imaginava que anos mais tarde estaria em cima de morros, fazendo coberturas jornalísticas de acidentes, engarrafamentos, assaltos, sequestros, tudo de mais cruel da miséria humana. É.... Me tornaria um repórter.

Os anos compartilhando os sofrimentos alheios deram-me, no entanto, uma vontade louca de viver apenas meu próprio sofrimento. Meu próprio sofrimento. E eu queria me libertar dele. Talvez vivendo-o, eu me libertaria. Talvez – eu pensava - descobrisse como fazer isso por meio da magia do cinema. Do mundo no qual mergulhamos quando nos encontramos sentados naquelas cadeiras pretas acolchoadas, tendo os olhos fixos na grande tela.

É. Eu queria ser cineasta. Descobri isso quando me tornei jornalista. Havia encontrado na profissão de repórter apenas um atalho para chegar a trabalhar com a sétima arte. Eu me convencera disto. A vida profissional de repórter de rua realmente me havia envolvido numa crosta dura e hermética. Havia me acostumado com a morte sem novidades e de uma tal maneira que já não reservava choro sequer para os três ou quatro parentes próximos que vi desfalecerem nos anos que atuava como cronista da vida urbana, nome mais romântico, creio, para designar o trabalho de um repórter. Talvez este cotidiano, totalmente diferente todos os dias, mas sempre repleto de novas manchetes, me tenha deixado com uma escrita padrão. Uma fórmula pronta. Receita de bolo mesmo. No final das contas, todos os acidentes na Dutra tinham a mesma estrutura, tivessem acontecido em qualquer quilômetro que fosse. Era só alterar o número. - Entre mortos e feridos nem todos se salvaram.

Queria trabalhar com a imagem de uma maneira mais romântica, onde se pudesse, talvez, extrair de uma linda cena de amor um lindo diálogo entre dois personagens, um ensinamento para a vida. ‘Acho que ficou piegas este exemplo. Mas acredito que no fundo, você, leitor, entendeu o que eu quis dizer. Tá bom sem exemplos”.

Algumas coisas em minha vida foram sempre acontecendo, penso eu, com o intuito de me levar para onde eu realmente queria ir. Foi assim quando sai da cobertura de assuntos de Cidade para o Segundo Caderno. Pensei: “Estou mais próximo do cinema agora. Só falta comprar o ingresso”. E o filme reúne John Lennon e Hilda Hilst, com roteiro de Alcir Pécora. Na trilha sonora, a música "De frente pro crime": “Tá lá um corpo estendido no chão”.

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